Nota sobre “A terceira margem do rio” (Alcides Vilaça, USP)
Bem ao modo de Guimarães Rosa, este conto curto de “Primeiras estórias” é um híbrido de arquétipo, mito fundador, alegoria e causo mineiro. Graças a essa composição, interpreta-se de muitos modos, abre-se em diferentes chaves, para quem já não se deleita em ficar com o encantamento simples de historieta imaginosa narrada em língua rosiana. O “fantástico”, para Rosa, é um outro estatuto da “realidade”, e ambas as margens se cruzam na do meio, que ele cria, e são essas as águas que lhe interessam. Na aberta riqueza do conto, que inclui a questão do legado paterno, da herança filial, do compartilhamento de destino, da viagem inefável, da missão sacralizada, está a resposta rebelde e decidida de Rosa ao impositivo “tertius non datur” das tantas binomias humanas. A decisão do pai de desviar a rota familiar, no compromisso de assumir a canoinha individual, pode ser vista como uma quebra nas sagas tradicionais por um solitário Ulisses sertanejo, agora em travessia sem porto.
Tremenda, assustadora travessia: o filho eleito, de sua margem firme, não responderá ao aceno do pai/fantasmático, na hora de substituí-lo no posto a vagar. “Sou homem, depois desse falimento?” – pergunta-se o herdeiro desistido, para em seguida responder: “Sou o que não sou, o que vai ficar calado”. A aposta do criador Guimarães Rosa parece sempre ter sido a de inaugurar espaços não sabidos, a partir do encontro das tradições com as invenções. Precisou para essa façanha de uma nova língua – essa terceira margem insuspeita da linguagem, espaço entre as coisas e os nomes, onde se procura e se busca estabelecer o sentido do que ainda não sabemos, e que tanto pede ao nosso compromisso de compreensão.
ALCIDES VILLAÇA é professor de literatura brasileira na USP, autor de “Passos de Drummond”
(ed. Cosac Naify).
Guimarães Rosa: A Terceira Margem do Rio | Yudith Rosenbaum (FFLCH – USP)
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